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volume I

Ao longo de seis meses (entre Novembro de 2017 e Abril de 2018), na casa do c.e.m – centro em movimento, decorreram seis sessões do seminário de investigação CRIAR CORPO CRIAR CIDADE onde se ouviram diferentes visões sobre diversas realidades. Entre territórios mais micro e mais macro, percorreram-se espaços entre Valência, Lisboa (cidade), Chelas, Praça da Figueira, Palestina e o planeta na sua globalidade.

Para a 1a edição do CRIAR CORPO CRIAR CIDADE contámos com a presença do Aitor Varea, do Álvaro Fonseca, da Joana Braga, da Marta Traquino, da Shahd Wadi e da Julia Bentz. Neste lugar de encontro e de partilha do que se está a fazer e a investigar, continuar a aprender esteve na base do processo, quebrando-se a pré-existência de fronteiras.

Levantaram-se questões que se dedicam a praticar e a pensar a experiência da cidade e a sua ressonância com a arte abrindo a hipótese para a existência de outras urbanidades. O espaço destes seminários, e agora deste livro, é abrir a possibilidade de criar plataformas de encontro, de discussão e de partilha entre áreas académicas e artísticas que geram novos discursos, que permitem outras formas de estar e que sustentam corpos atentos, críticos, abertos e dialogantes. Conhecer e dar a conhecer projectos que estão a criar-discutir-agir sobre a cidade e o mundo na contemporaneidade é um dos objectivos desta edição. É neste diálogo colectivo e partilhado que pretendemos continuar a trabalhar.

Ana e Sofia, Julho de 2018


volume II

Ao longo dos anos as cidades têm sido palco de inúmeras transformações e deformações, que têm transformado e deformado os corpos. Os tempos têm sido rápidos e a precipitação para a obtenção de lucro ainda mais rápida. Temos acompanhado estas mudanças: as praças e miradouros fechados e privatizados à revelia dos habitantes, os habitantes despejados das suas casas, o ruído das obras, do trânsito e das mudanças que não dão descanso, os movimentos que levam corpos para longe dos seus espaços mais familiares porque as rendas são agora incomportáveis e os movimentos opostos que trazem para dentro da cidade quem pode economicamente habitá-la e usufruí-la. Várias alterações legislativas dos últimos anos [Regime fiscal para os residentes não habituais – 2009; Regime jurídico dos fundos de investimento imobiliário – 2010; Lei do arrendamento urbano (Lei no31/2012); Vistos Gold – 2012; Regime Excepcional para a Reabilitação Urbana – 2014] favoreceram o aumento do valor do solo, dos preços da habitação e têm provocado o despejo de habitantes da cidade, sem condições financeiras para pagar os novos preços das rendas. O mercado imobiliário foi desregulado e impulsionado, atraindo, assim, novos proprietários, ao mesmo tempo que alguns espaços adquiriram uma nova aura, passando a destinar-se, essencialmente, a turistas e visitantes.

No meio destas mudanças, perguntas vão surgindo, também, com maior rapidez, tornando cada vez mais premente a necessidade de uma reflexão maior e mais de- morada. O CRIAR CORPO CRIAR CIDADE surgiu desta necessidade de demora, de encontro e de reflexão.

Assistimos diariamente a este tipo de mudanças: o que hoje era, amanhã já não está lá! Definem-se novas imagens para os lugares, descontextualizadas, aumentando a sua superficialidade e criando imagens e imaginários que se tornam mundos paralelos à realidade. Os discursos sobre a cidade e sobre a forma como é produzida têm privilegiado a construção de uma trama narrativa que perverte uma realidade invisível. Só se vê a cidade bonita, turística, pensada à medida, produzida com a pressa de chegar mais rapidamente a um futuro desenhado.

A exclusão, a segregação, a precarização, a estigmatização ou a fragmentação aparecem distantes a quem olha. É a imagem que se quer projectada para fora que é visível. É a cidade cosmopolita, vibrante, ‘espectacular’ que despolitiza os espaços e os corpos, acentuando eufemismos e antagonismos, e empurrando-os para uma neutralidade cada vez mais evidente como se de um vazio se tratasse.

Como uma mancha gigantesca que escorre sem olhar por onde, a destruição da Lisboa que conhecíamos até há pouco mais de dez anos varre o quotidiano, fazendo aparecer cenários que pretendem seduzir e capturar quem os use e pague por isso. Alimenta-se, assim, mais e mais a venda de tudo o que se possa imaginar, da casa ao palácio, da ruína à estação de comboios, da loja de família ao armazém centenário… quem habitava a cidade foi escorraçado para outro lugar ou fugiu para a “terra” mesmo que a “terra” sempre tenha sido Lisboa. Quem mora no centro de Lisboa são os ocupantes dos alojamentos locais (AL), e os poucos que ainda estão nas suas casas irritam-se contra tudo o que mexe, fartos dos abusos de tudo, como a poluição cruel dos paquetes ou o som estridente dos cafés e dos bares, ou dos trolleys que rolam pela calçada. Nesta massificação onde as estruturas não aguentam, o lixo acumula-se em cada esquina, porque a cidade cortou as ligações com quem a ama.

Em todos os cantos mora gente sem tecto. Gente que já não corresponde ao estereótipo do toxicodependente, do louco ou do bandido. Gente que não consegue pagar a sua renda mesmo que tenha o luxo de ter um emprego com contrato… gente-qualquer. Corpos constantemente filmados, fotografados e desconsiderados. As proibições aumentam, o espaço publico é retirado da fruição comum e em cada canto brilham luzes coloridas exibindo tradições que nunca existiram. E no meio deste caos vertiginoso, a Lisboa escondida por baixo da Lisboa forçada a vender-se teima em respirar em ruelas escondidas, em beirais coroados de papoilas e em sorrisos sinceros. A demora convida ao aparecer da cidade emudecida, dos corpos possíveis que criam espaços onde se pode existir.

Foi neste contexto, que CRIAR CORPO CRIAR CIDADE continuou a sua viagem de encontro e reflexão trazendo lado a lado experiências, vivências e considerações diversas que nutrem a possibilidade de desentupir discursos já banalizados e abrem brechas para que uma outra experiência de cidade possa vibrar e que os corpos possam confiar em formas de ser-estar-fazer que não reduzem e miserabilizam a humanidade.

Esta 2a edição do CRIAR CORPO CRIAR CIDADE percorreu caminhos que nos levaram aos contextos mais periféricos da cidade, abordámos o seu centro e as dinâmicas do investimento imobiliário, da privatização, da turistificação e da especulação, aprofundámos o conhecimento sobre a presença do corpo no espaço e sobre outras formas de estar. Para que estas reflexões fossem possíveis, contámos com a presença do Ricardo Venâncio Lopes, do Agustín Cocola-Gant, da Ana Jara, da Mariana Viana, da Julia Salem, da Rita Fouto e do Daniel Paiva que partilharam connosco as suas experiências e conhecimento. Continuámos este diálogo colectivo abrindo espaços de reflexão e ressonância em cada um(a) que agora partilhamos neste e-book de acesso aberto.

Ana, Filipe e Sofia, Julho de 2019